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Salve a Amazônia – consumindo madeira

Se apenas boicotarmos o consumo de madeira, daremos passe livre para outras atividades que degradam a floresta

Nas últimas décadas, os holofotes sobre a Amazônia têm recaído sobre uma questão fundamental: o desmatamento. Isso nos levou a pensar em vilões e mocinhos quando o assunto é a desvastação da floresta. E para compreendermos o que está em jogo na Amazônia precisamos recuperar parte relevante da história política e de desenvolvimento do Brasil.

A Amazônia é um dos biomas mais conservados no território brasileiro. Talvez pela sorte de estar longe da costa, foi o que menos sofreu no período colonial, quando da alta exploração irracional de madeiras tropicais quase deu fim à Mata Atlântica. O século XIX marcou a era da devastação do Cerrado brasileiro. É deste período uma grande expansão urbana e crescimento populacional que marcaram a necessidade de produção agrícola, associada a uma política de desenvolvimento que conhecemos até hoje.

Mesmo após dois biomas assolados pela invasão das cidades e pela substituição de milhões de hectares de vegetação nativa por pastos e plantações, vemos a história se repetir. Dessa vez, para cima da maior floresta tropical do planeta: a Amazônia.

O que se vê é a existência de um grupo economicamente poderoso e com poder de fogo junto às bancadas que o representa no Congresso Nacional para a proposição e alteração de políticas públicas e marcos regulatórios. Do outro lado, está um grupo menor e pouco protegido, que recebe toda carga de ataques e responsabilização sobre os dados de desmatamento na Amazônia. E são os madeireiros que recebem, de forma absurdamente irresponsável, a culpa sobre o desmatamento.

Nos últimos anos temos pesquisado e trabalhado de perto com as atividades produtivas que se desenvolvem na Amazônia. E em nenhuma delas vimos um esforço tão grande quanto no setor de base florestal para a manutenção de floresta em pé. Grande parte vem da ONG WWF-Brasil, que tem adotado um perfil de atuação diferente dos seus pares ambientalistas pelo mundo. No lugar dos ataques e acusações contra o setor madeiro, encontramos um trabalho colaborativo e que, junto ao Fórum Nacional das Atividades de Base Florestal (FNBF), tem atingido resultados significativos no combate à ilegalidade e fomento à produção sustentável da madeira tropical e seus subprodutos.

O que explica a atuação dos madeireiros junto a uma ONG no combate ao desmatamento não se justifica apenas sobre uma responsabilidade que recaiu ao longo dos anos sobre o setor. Há alguns fatores relevantes que endossa esta causa e que compartilha uma responsabilidade com os consumidores pelo país.

As atividades produtivas florestais, sobretudo a madeireira, tem se apresentado como a principal alternativa para um modelo de desenvolvimento econômico da região que considera para a sua perenidade a conservação da floresta em pé. Hoje, as práticas de exploração florestal estimuladas pelo FNBF e adotadas por algumas empresas são o chamado manejo sustentável. Diferentemente do corte raso, que derruba árvores em toda uma área, o manejo se preocupa com a seleção de árvores maduras prontas para o corte. E tem o cuidado de selecionar rigorosamente as porta-sementes, que garantirão a semeadura daquela espécie ao longo do tempo.

As atividades de base florestal garantem o envolvimento comunitário e a permanência de trabalhos que seguem as vocações culturais dos povos. As atividades podem coexistir. Isso pode ser verificado no sucesso do estado do Acre, que há mais de uma década investe nas atividades florestais como principais fontes de renda e trabalho para a população. Lá encontramos a extração de madeira, a produção de borracha, a coleta de castanhas e açaí e o cultivo agroflorestal. Todos convivem em harmonia, o que seria impossível num caso de conversão de floresta por pastos ou monoculturas.

Um ponto interessante é que as atividades florestais consideram outros modelos econômicos não hegemônicos, como o cooperativismo e o associativismo. E assim, caminha na mesma direção de soluções mundiais para a redução da pobreza e das desigualdades.

Quanto à nossa responsabilidade como consumidor, temos aqui dois importantes argumentos que contribuem não apenas para a conservação do bioma, mas também para o desafio global das mudanças climáticas. Entre os produtos tradicionalmente utilizados na construção civil e na decoração de ambientes, a madeira é a que mais se adequa a critérios de sustentabilidade. Enquanto aço, ferro, cimento, plástico e cerâmica são feitos de matérias-primas não renováveis, deixando um tremendo impacto no meio ambiente, a madeira é renovável e possui vantagens sobre os demais. Enquanto os outros emitem gases de efeito estufa durante a sua produção, a madeira tem o efeito contrário, sendo um dos principais sequestradores de carbono na natureza.

A madeira é o produto que mais apresenta diversidade na sua aplicabilidade, dando ao consumidor uma infinidade de possibilidades de cor, textura, resistência, formato e, inclusive, aroma. Se adotássemos uma postura de boicote a este produto – o que vinha acontecendo nos últimos anos – estaríamos assinando o passe livre para a entrada permanente das atividades agropecuárias nas áreas de floresta e atestando o fim de um empenho de anos de manter vivas as tradições locais. Se a economia florestal não é aquecida, outras atividades não sustentáveis ganham escala com a desculpa da geração de empregos e renda. E atestam a defesa de uma soberania nacional que passa pela lógica macroeconômica de alta produtividade para exportação.

A decisão do consumo e seus impactos sobre a conservação de um bioma também é da população, que pode a cada dia rever seus conceitos sobre o consumo e seus impactos numa cadeia muito mais ampla. Aos governos cabe reavaliar a trajetória a percorrer. Hoje, a madeira paga tributos mais altos que produtos menos sustentáveis. A madeira contribui com 12% de ICMS, mas a cerâmica, por exemplo, paga menos de 7%.

Há uma revisão considerável a ser feita quanto aos rumos do desenvolvimento por aqui. Alguns governos, empresas, e ONGs já começaram a se movimentar neste sentido. Basta agora saber o quanto estamos dispostos a nos envolver e levar em conta nossa responsabilidade, seja politicamente, seja enquanto consumidores.

*Rafael Murta Reis é sócio diretor da Ecodiálogo e pesquisador do Centro de Estudos em Administração Pública e Governo da Fundação Getulio Vargas.